Quando as gavetas das memórias se abriram para mim, recordei-me que por volta dos 7 anos minha mãe foi me buscar na escola e fomos caminhando por uma das avenidas principais de minha cidade. Era uma avenida larga, comprida, e meus olhos perdiam-se nela. Neste dia estava bastante movimentada com carros e pessoas. Eu, de mãos dadas com ela, observava as lojas ao redor quando me deparei com um lugar escuro e recuado. Este lugar desconhecido, era imenso e escuro, tinha uma espécie de pano branco esticado na parede da frente, com muitas poltronas vermelhas; e enquanto o observava encantada e curiosa, ouvi minha mãe dizer: "Filha, estamos no cinema...". Uma reflexão me ocorre e percebo o quão alquímico talvez fosse aquele lugar, com as cores: preto, branco e vermelho, pois hoje compreendo que referem à escuridão, os esclarecimentos e o Amor que transpõe o meu caminho.
Fragmentos de uma Autobiografia
Não me lembro de minha mãe comprando os ingressos, apenas recordo-me de nos sentarmos e ela continuar dizendo: "Vamos assistir à Bela e a Fera!". O filme começou e meus olhos nem piscavam. Assistir atentamente o desenho e sua trama quando, de repente, uma cena me impactou: a Bela aceitou valsar com a Fera. Tomada pela emoção, encanto e deslumbre, senti que algo se movimentou em mim, uma energia desconhecida, porém muito viva. Várias questões me vieram à mente: como a Bela teve coragem de dançar com essa Fera feia? E se a Fera devorasse a Bela? A Fera parecia olhar com clamor para Bela e ela não parecia temê-lo na dança, era como se o que estivesse acontecendo ali?
Dentre tantas lembranças esta foi a primeira que saltou para fora da gaveta de minha infância e foi nela que senti uma ‘magia’ pela primeira vez. Este é um conto de fadas sempre presente em minha vida e parece estar conectado com os fenômenos que a permeiam: relações de amor e ódio, de medo e alegria, paixões avassaladoras e ambivalências. De certo modo, posso afirmar isto, pois hoje compreendo que em toda Bela há uma Fera, o que me recorda uma passagem do Jung que fala que a psique possui aspectos instintivos e selvagens.
É sabido que excelentes contos de fadas possuem, além de feras, grandes bruxas, pois não é apenas de beleza e frutos saborosos a trama deles. Algumas vezes, os contos não possuem apenas uma bruxa e neste da minha vida, no decorrer dos anos foi marcado por várias Feras e grandes Bruxas. Feras que destruíram em pedaços o mundo das ilusões e Bruxas que me atiraram ao fogo das frustrações. Hoje vejo que minha mãe, minha primeira bruxa, me empurrou para o mundo, foi a benção dentro da minha maldição e mal eu sabia que Valor era esse que ela tanto me falava - hoje noto o quão grata sou por ter essa bruxa em minha história. Devaneio o quão fundamentais são e foram os dissabores e decepções, bem como as feras e as bruxas para estruturar essa personalidade que está sendo forjada, sendo que sinto e percebo a dor da inconsciência, do desconhecimento da minha essência, ser muito mais intensa que a das frustrações que me trazem a Verdade.
Nos anos que se desenrolaram, concluí a faculdade e fui para o mercado de trabalho na área de Gestão de Pessoas, e no ano que completei 30 anos, já casada, após construirmos a nossa casa e comprarmos um carro, de repente, percebi que perdi todo o sentido da minha vida. Não queria mais trabalhar, sair, me relacionar, e sim, apenas ficar em casa, sem conversar com ninguém. Então, certo dia, um convite chegou a mim para uma palestra cujo o tema era a Linguagem dos Sintomas com uma tal professora chamada Sonia Lyra. Muito relutante reuni forças e pedi para meu marido me levar, pois nem dirigir eu conseguia (algo que sempre estimei fazer). Em um dado momento da palestra, a professora fez a seguinte afirmação: "Psicologia vem do grego onde Psique quer dizer alma e Logia, o estudo, então o que fazemos é o estudo da alma". Esta frase fez que uma energia retornasse, juntamente com uma indignação e o seguinte questionamento: Como foi que ninguém me disse isso em cinco anos de faculdade? Fiquei estupefata por ter perdido tanto tempo sem saber disso. Mas aquela frase daquela professora, tornou-se para mim a condição da possibilidade de uma Vida nova, de um Caminho novo. Naquele instante, eu soube que algo mudou, e tudo mudou. O estado em que me encontrava antes de entrar naquele auditório já não estava mais na mesma intensidade. Retomei a Psicologia em minha vida - o estudo da alma. Fui em busca de uma das psicólogas que acompanhava a palestrante e retornei para a terapia. Esta escolha fez com que precisasse me atirar no abismo profundo de mim mesma, mas tinha uma guia para me mostrar como trilhar a escuridão deste caminho. Iniciei os estudos necessários desse processo até que comecei atender na clínica. Agora aqui, trilhando todo esse caminho e escrevendo sobre ele, consigo compreender que aquele conto no filme fala sobre a alma. Que a Psique (Alma) é representada pela Bela e a Fera parece ser um dos instintos ainda não transformados da Grande Fera que me habita. Percebi que meu interesse principal hoje é sobre Eros e Psique, ou seja, o Amor e Alma e o Grande encontro deles.